Com musicais cada vez mais focados apenas nas vozes de seus intérpretes, deixando de lado todo o resto, ou seja, a dramaturgia, a atuação e a dança, é um alento assistir ao musical “Cinderella''.
A peça escrita por Rodgers & Hammerstein para a televisão estadunidense em 1957 ganhou texto com nova roupagem na Broadway em 2013 assinado por Douglas Carter Beane. É nesta versão que se baseia a encenação brasileira com direção majestosa de Charles Möeller e versão fluída de Claudio Botelho, que assumiram a montagem após dois diretores abandonarem o processo: Ernesto Piccolo e Ulysses Cruz.
Möeller e Botelho, tarimbada dupla que já havia feito com sucesso “A Noviça Rebelde'', da mesma dupla de autores norte-americanos, repete o acerto nesta montagem produzida pela Fábula Entretenimento.
Ao contrário dos musicais que nada mais são do que um compilado de canções conhecidas com um texto improvisado e atuações escolares, em “Cinderella'' o conjunto é harmonioso e de qualidade impactante. O espetáculo prende a plateia do começo ao fim, em uma história que une fantasia a uma forte crítica social e política.
Assim, o público não se impressiona apenas com a grandeza da superprodução: com o cenário suntuoso e que mescla realismo com fantasia assinado por Rogério Falcão, com os figurinos magníficos de Carol Lobato, com a coreografia infatigável de Alonso Barros ou com o show de luzes proposto por Maneco Quinderé. Mas, também, vibra com cada uma das atuações carismáticas do talentoso elenco, embalado por uma virtuosa orquestra regida por Carlos Bauzys.
Após trilhar longo caminho no mundo dos musicais, inclusive nos bastidores, onde é tradutora e versionista respeitada, Bianca Tadini mostra maturidade e domínio técnico, sem jamais perder o frescor, ao dar vida a Cinderella.
Como o bobalhão Príncipe Topher, papel que divide com Tiago Barbosa (também muito gracioso como Lorde Pinkleton) , Bruno Narchi está preciso e convincente. Já Totia Meirelles constrói sua Madrasta sem dúvidas, fazendo com que o público compre a sua vilã.
E o elenco coadjuvante está afinado, vivo e com bom tempo para a comédia, caso do tarimbado Carlos Capeletti na pele de Sebastian, das espevitadas Raquel Antunes e Giulia Nadruz como as filhas da Madrasta, da carismática Ivanna Domenyco, intérprete da envolvente Fada Madrinha, e do aguerrido Bruno Sigrist, como o revolucionário Jean-Michel. Todos em excelente performance.
A mesma sintonia se repete no restante do elenco e no coro. Há vida intensa exalando no palco todo o tempo, mantendo o público desperto e dentro da história.
E o melhor achado deste musical é não ficar apenas no conto de fada, mas fazer uma ponte entre o reino da fantasia e o mundo real em que vivemos, propondo uma discussão política que se casa com o tenebroso momento vivido pelo Brasil.
O espetáculo critica ricos e poderosos que não querem abrir mão de seus privilégios, para o qual inventaram o nome medonho de “meritocracia''. Os que mais têm pouco se importam com os mais pobres, passando por cima destes e buscando entretê-los com um bem sucedido jogo midiático, tornando-os massa de manobra, para permanecerem com as mãos nos cofres públicos. Esta é a premissa do enredo de “Cinderella'', mas bem que poderia ser uma análise do Brasil contemporâneo.
Ver tal discurso político presente em um grande musical é um alento. “Cinderella'' prova que entretenimento não precisa abrir mão da inteligência nem da qualidade artística.