Crítica: Cinderella, o Musical

Confesso que fiquei surpreso quando soube que Charles Möeller e Claudio Botelho assinariam a direção de “Cinderella, o Musical”. A produção estava sendo acompanhada pelo meio teatral com especial atenção tais os percalços enfrentados até que ganhasse finalmente sua estreia, no último dia 11 de março no Teatro Alfa, São Paulo.
Com produção assinada por Renata Borges Pimenta e autorização para captar R$ 15 milhões pela Lei Rouanet, ganhou desde seu início destaque na mídia, começando pela longa matéria no “Fantástico” em outubro sobre suas audições para a escolha da atriz que faria o tão cobiçado papel-título. Nesse transcurso alguns diretores assumiram e abandonaram o comando do projeto, como Ernesto Piccolo, que saiu da produção atirando para todos os lados, e mais recentemente Ulisses Cruz, cuja escalação nunca entendi. Atrizes foram igualmente contratadas e posteriormente deixaram a produção, como Cassia Kiss e Sabrina Korgut. No último momento chegou a informação que Möeller e Botelho estariam negociando sua entrada no esptáculo. Imaginei que era cortina de fumaça e que a dupla não fosse topar empreitada tão arriscada. Mas toparam! Em 28 de janeiro foram anunciados oficialmente.
Charles Möeller e Claudio Botelho embarcaram para São Paulo levando consigo alguns fieis colaboradores como Rogério Falcão, Carol Lobato, Tina Salles, Beto Carramanhos, Lorena Morais, entre outros. Começaram então a colocar de pé a versão Möeller & Botelho para “Cinderella, o Musical“.
O espetáculo reunia todos os ingredientes para se transformar numa acidental versão teatral de “Crônica de uma Morte Anunciada”. É justamente nessas horas que se sente o peso de 25 anos de uma carreira sólida, em que a realização de dezenas de sucessos com textos de alto grau de complexidade não é obra de um mero acaso. Charles Möeller e Claudio Botelho venceram o desafio que se propuseram e fizeram de “Cinderella, o Musical” um espetáculo do mais alto nível de refinamento artístico.
A história da menina que passa a vida sendo humilhada, maltratada e subjugada pela madrasta após a morte do pai e que a partir do encontro com um Príncipe vê sua perspectiva de vida mudar, tem uma origem muito mais remota que a versão final de Charles Perrault e mesmo dos irmãos Grimm. Registros existem desde a China antiga com Yeh-Shen e mesmo Rhodopis(a menina das bochechas vermelhas) na Grécia, ganhando uma enorme difusão a partir da tradição oral na Europa medieval. As versões definitivas são atribuídas a Perrault e aos Irmãos Grimm, sendo que em ambas existem consideráveis diferenças, como a inexistência da figura da fada madrinha na obra dos Irmãos Grimm. Essa história que há séculos reside no inconsciente feminino se rende as mais diversas camadas e leituras, com infinitas possibilidades de construção.
A versão que ora se apresenta é calcada na adaptação de Perrault, “Cendrillon, ou la Petite Pantoufle de Verre”, que ganhou letras de Oscar Hammerstein e música de Richard Rodgers em 1957 para um especial na TV norte-americana CBS, com Julie Andrews no papel-título. Sua estreia nos palcos aconteceu dm 1958 em Londres, tendo recebido uma atualização em 2013 na Broadway com um novo libreto escrito por Douglas Carter Beane.
O libreto de Beane subverte adoravelmente a mera visão de uma donzela passiva de sua Cinderella, delineando-a com uma visão curiosa sobre o mundo injusto ao seu redor e de um maior sentido de humanidade, sem que o conto-de-fadas perca necessariamente seu espaço. Ao mesmo tempo busca uma essência mais próxima do original, como pode ser observado nos contornos adotados pela Madrasta e pelas irmãs, retirando uma dose do peso puramente maniqueísta utilizados pela Disney, mas sem que isso signifique uma incondicional absolvição.
A versão brasileira leva a assinatura de Claudio Botelho, que dá toda a sustentação ao desenvolvimento cênico de MöellerBotelho, como ninguém no Brasil, sabe trabalhar a adaptação para a nossa prosódia, explorando o espírito original da obra com a correção absoluta da fonética e da métrica, deixando o resultado musical e narrativo fluído e eficaz.
A direção de Charles Möeller é soberba!  Möeller não é um mero reprodutor de clássicos da Broadway, como muitos “encenadores” que andam pelo nosso mercado, é acima de tudo um criador que sempre deixa sua marca.  Há uma enorme adequação ao espírito da obra na atmosfera e estética adotadas para contar sua história. A ocupação cênica e a dinâmica narrativa são tratadas com um cuidado milimétrico, em que não se percebem gestos ou movimentos gratuitos. Nota-se no seu elenco a segurança com que se sente envolvido pela mão presente de sua direção de atores. Tem a perfeita consciência do que é necessário extrair de cada um dos seus atores para atingir a intenção correta para cada situação demandada pela música ou dramaturgia, podando todas as possibilidades de extravasamentos desnecessários ou destoantes. Mesmo quando explora os recursos da projeção, algo sempre arriscado e que nem sempre é utilizado de forma adequada em diversos espetáculos, consegue compor um diálogo que valoriza bastante a força dramática e sem que o artifício soe gratuito, mas inteiramente inserido nas necessidades.
Escolhida entre mais de 1500 candidatas para o papel-título, Bianca Tadini comprova o acerto de sua escalação, com uma boa presença em cena, expressividade, personalidade, força dramática, além de demonstrar ótima técnica vocal. Entre os principais destaques aponto a atuação de Giulia Nadruz, como Gabrielle, uma das filhas da madrasta. Já tive o privilégio de acompanhar sua atuação em outros espetáculos, sempre demonstrando enorme talento e capacidade. Em sua composição explora com grande conforto a zona do humor de sua personagem, que sofre ao longo do seu arco dramático uma mudança de posição em relação à protagonista. Apenas senti a ausência de uma maior participação de seu personagem em números musicais, tendo em vista, tratar-se uma cantora de vastos recursos. Bruno Narcchi tem o que considero uma das mais ingratas tarefar, dar vida a um dos mais bobos e desastrados príncipes dos contos-de-fadas, como é o caso do pretendente de Cinderella. Porém, o desenvolvimento dramático do texto de Beane contribui bastante para uma melhor composição do que de costume e o ator realiza um registro acertado e com bastante segurança no canto. Totia Meireles constrói com eficiência e graça a célebre madrasta. Ivanna Domenyco esbanja carisma com sua fada-madrinha. Há que ressaltar igualmente as boas participações de Carlos Capeletti como o astuto Sebastian, Bruno Sigrist no papel do revolucionário Jean-Michel, Raquel Antunes divertidíssima vivendo a outra filha da madrasta(Charlotte) e o Lord Pinkleton interpretado por Tiago Barbosa.

A coreografia de Alonso Barros tem bastante beleza plástica, além de contribuir com desenvoltura para a linha narrativa de cada situação apresentada.
A cenografia de Rogério Falcão expressa-se com realismo, mas sem perder o tom fantasioso da época retratada. Seja na construção de uma cidadela medieval, ao ambiente sombrio do núcleo feminino ou na suntuosidade do castelo real. Possibilita diversas composições cênicas, assim como se percebe bastante facilidade na transição entre os ambientes nas mudanças de cena, independentemente de sua complexidade.
Os figurinos Carol Lobato apresentam mais além de um trabalho de pesquisa, um sentimento de leveza visual apesar da complexidade dos desenhos e da confecção. Carol parece brincar com a exploração de uma paleta de cores que alcança uma beleza estética encantadora ao olhar do público. Existe por trás de cada figurino um cuidado em cada mínimo detalhe, a busca pela qualidade na forma e concepção. Impressiona o trabalho maravilhoso realizado num prazo exiguíssimo para vestir um vasto elenco com figurinos tão sofisticados. Tenho entre minhas convicções que Carol Lobato é atualmente a melhor figurinista em franca atividade no teatro nacional.
A iluminação de Maneco Quinderé não se contenta a um papel passivo de realçar e preencher os espaços vazios deixados pela direção, mas de dialogar com a dramaturgia exercendo papel protagônico na construção de cenas, acentuando intenções e interagindo permanentemente com o elenco.
A direção musical de Carlos Bauzys mantém o mesmo nível de excelência que pude perceber no seu trabalho em “O Homem de la Mancha”, destacando a força dos metais, mantendo a música sempre num plano vibrante a se propagar na atmosfera da sala.
Cinderella, o Musical” comprova que apesar de tentarem reduzir a importância de Claudio Botelho e Charles Möeller no cenário cultural brasileiro, eles sempre terão um palco de teatro para demonstrar que ali são insuperáveis. Será necessário muito mais que uma ridícula retórica ideológica para querer destruir 25 anos do mais belo e competente teatro realizado em nosso país nas últimas 2 décadas.

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