NINE É DEZ! TOTIA MEIRELES ROUBA CENA E O MUSICAL TEM MAIS QUE NOVE MOTIVOS PARA ARREBATAR

Qualidade da encenação consegue até mesmo superar a poesia da inspiração no universo onírico de Federico Fellini


Nine  um musical felliniano é ótima razão para alguém, que porventura ainda tenha alguma resistência a assistir a este tipo de espetáculo, ir correndo ao teatro. Redondo do início ao fim, apresenta ótima encenação, roteiro bem orquestrado, músicas que ficam martelando na cabeça, coreografias sensacionais e qualidade visual impecável. Tendo estreado na Broadway no início dos anos oitenta, com texto de Arthur Kopit e canções de Maury Yeston, virou filme em 2009 sob a batuta de Rob Marshall (“Chicago”), com elenco estelar – Daniel Day LewisNicole KidmanJudy DenchSophia LorenPenélope Cruz e outras. O longa não foi tão bem recebido assim pela crítica, embora tenha seus méritos, entre os quais o de catapultar o musical ao estrelato entre o grande público. Afinal, não se trata de uma obra “fácil”. Em cena, a plateia não assiste a uma menina levada por um tornado a uma terra mágica distante, nem a uma noviça que, ao cuidar da prole de um austero militar austríaco, se apaixona por este para viver um romance água com açúcar. “Nine” não é história adocicada para todas as idades, mas trama adulta na qual questões de cunho moral judaico-cristão como adultério, vaidade e superego encontram-se algumas centenas de metros abaixo daquilo que importa: a criatividade de um gênio do cinema ameaçando submergir em mar revolto.
A história, livremente adaptada da obra de Federico Fellini a partir de sua própria personalidade magnética e em cima da pérola da Sétima Arte 8 1/2“, narra a crise criativa de um cineasta que se confunde com o turbilhão emocional de sua vida pessoal. Nesse âmbito, até mesmo a duração da peça (em dois atos, o primeiro maior e mais contundente, o segundo no timing certo, não tão bom quanto o primeiro, mas com final delicioso), mais a delirante música – com sonoridade nitidamente inspirada no legado de Nino Rota, colaborador habitual de Fellini e também responsável pela aura que seus filmes carregam – é o primeiro atrativo para segurar o público na cadeira em uma bem amarrada sequência de cenas faladas e números musicais. Com anos de estrada, a dupla Charles Möeller e Claudio Botelho faz parecer que aquilo que flui lindamente no palco foi fácil de fazer, ainda que se desconfie de que eles devem ter comido um dobrado para chegar à excelência desse resultado, como uma dançinha qualquer de Fred Astaire a qual, olhando na tela, faz todos crerem que o astro tocava tudo com o pé nas costas. Essa é a principal magia de “Nine”, a despeito do universo delirante de Fellini.

Nem é preciso falar que a iluminação de Paulo César Medeiros (um gênio, sempre!) e a boa cenografia deRogério Falcão funcionam que é uma beleza! Mas surpreende o figurino de Lino Villaventura. Fashion designerdo primeiríssimo escalão, havia a curiosidade de saber se a sua forte identidade enquanto criador poderia de alguma forma sobrepujar a necessidade de elaborar o visual de cada personagem, considerando que o universo felliniano trabalha com arquétipos e mesmo levando em conta que não é nem de longe a primeira vez que o estilista cria para o palco. Mas Lino é Lino. É delicioso conferir que o seu repertório de nervuras, drapeados, pregas, repuxados e rebordados contribui tão bem para acentuar o redemoinho que se passa na cabeça do personagem central. E, se a vida se confunde com a obra do protagonista – e as figuras da sua trajetória também são criaturas da própria cabeça, moldadas e forjadas pela sua imaginação –, natural que os respectivos figurinos exalem esse aroma de inconstância emocional através de detalhes de confecção que só poderiam sair da mente privilegiada de Lino Villaventura, que ainda consegue a façanha de adaptar cada croqui lindamente para os diferentes shapes das atrizes.




Completando tudo, o belíssimo trabalho de visagismo de Beto Carramanhos contribui para a máscara dos atores, acentuando o clima onírico geral. Ele soube captar o olhar de criança exercido por Federico Fellini ao largo de sua existência, o de alguém modelado pela infância passada em Rimini – cidade costeira na Itália e balneário chique nos anos tenros do diretor – no qual a galeria de personagens que surgiam no vai-vem dos transatlânticos art déco era tão observada quanto a sucessão de tipos grotescos dos circos e parques de diversão mambembes que acampavam nos arredores da cidade. Esse manancial de criaturas igualmente luxuosas e bizarras se tornou inesgotável fonte de inspiração para Fellini em sua filmografia e Beto consegue transitar entre o burlesco e a poesia com aura retrô em seu trabalho de caracterização na peça.
As coreografias de Alonso Barros e Charles Möeller, se não são inovadoras (e nem precisariam ser! Por quê, afinal das contas?!?), dão cabo lindamente da missão de narrar a história. Os desenhos coreográficos ocupam muito bem o palco e as marcações de cena são de dar água na boca, com nítida inspiração no catwalk das top models. Quer mais circo atualmente do que as semanas de moda? Aliás, as referências em Bob Fosse são notórias e abrilhantam o resultado.



Somam-se ao trabalho de movimento o ótimo design de som de Ademir Moraes Jr. e a direção musical e regência de Paulo Nogueira, responsáveis em boa parte pelo envolvimento do público que, diante da música bem sincopada, chega a bater palmas como se estivesse num circo. Tudo o que se espera de Fellini, aliás.
Intérprete de Guido Contini (o diretor), Nicola Lama consegue a façanha de ficar o tempo inteiro em cena sem perder o fio da meada, mesmo com a sucessão de tipos peculiares que brotam no palco, como se surgissem de sua imaginação. Ele atua muito bem, dança muito bem (sem esquecer o personagem, um mérito!), canta muito bem e consegue dar cabo das duas horas de peça. Seu ponto forte: o talento para compor personagem. A alternância entre a eterna postura de menino e a virilidade masculina de quem projeta os quadris para a frente, como se fosse um garanhão prestes a papar todas as mulheres, fica visível e a coexistência entre o garoto que espera a aprovação materna e o homem maduro em dilema interior fica clara desde os primeiros minutos.
Como se fosse um Zorba, um grego que concilia a alegria de viver com o aspecto mais visceral (e contraditório) da condição humana. É soberba a forma com que Nicola roda os ombros para frente o tempo todo, dando a entender que a neurose – que também é matéria-prima para a genialidade – grita.


Entre o elenco, Totia Meireles rouba a cena. “Ela não é uma qualquer”, como diria Claudia Raia, e já surpreendia plateias em meados dos anos 1980 quando dividia com esta a Sheila da antológica montagem de“Chorus Line“ em encenação que ainda trazia no casting baluartes como Roberto Lima, Rubens Gabira, Thales Pan Chacon e Sheila Mattos. Agora, no papel da produtora Lili La Fleur, ela engole todos como se fosse um Saturno pronto para devorar divindades olimpianas. Impossível tirar os olhos dela, que pinta e borda.


Aliás, entidades dos palcos como Malu Rodrigues e Myra Ruiz também saem na frente com interpretações deliciosas aliadas a vozes deslumbrantes. Entre as que vêm da atuação, mas ainda não possuem tarimba de musical, Carol Castro segura muito bem o papel, auxiliada pela semelhança física entre ela e Marion Cotillard, que faz a esposa do diretor no cinema. E ainda arrasa em um número de dança. Karen Junqueira imprime atmosfera mágica à musa do cineasta e causa boa impressão quando se arrisca nos vocais. E Letícia Birkheuerse vale da vivência como top model internacional para evoluir bem nas marcações de palco, sabendo aproveitar o figurino como ninguém, mas a sua editora da Vogue – aliada à sua inexperiência nesse tipo de espetáculo – não permite outros voos.



Na difícil tarefa de substituir o furacão Beatriz Seagall, que iniciou a temporada paulista e precisou se afastar da produção, Sonia Clara impressiona como a mãe do protagonista, a começar pelas ótimas expressão facial e projeção de voz que dizem tudo. Para quem se acostumou com a presença da estrela nas novelas da TV Manchete ou nas realizações globais de Silvio de Abreu e Janete Clair, é um alento rever seu talento, ainda mais agora conferindo que o tempo lhe fez bem. O carão de diva italiana, a la Sophia Loren ou Claudia Cardinale, só contribui para o seu bom desempenho e para o conjunto da peça.
Em tempo: impossível não terminar este artigo sem destacar a presença no palco de Luiz Felipe Mello, que interpreta o Guido Contini criança. Além da afinação na hora de soltar a voz, a atuação brilhante pode fazê-lo ser comparado com o Jackie Coogan de “O Garoto” (The Kid, de Charles Chaplin, 1921). Não é exagero…

Fonte: ÁS NA MANGA

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